Por Bruna Lauermann
Direto de Nova York
Ainda que seja uma sensação falsa, já que cruzar a fronteira dos Estados Unidos com o mundo é bem difícil, morar em Nova York dá a impressão de que se vive no mundo todo. Ou de que o mundo todo é fácil de acessar, e grátis. Na sexta-feira, dia 20 de abril, navegando pela internet, descobri que estava ocorrendo o “PEN America – World Voices Festival”. Fui checar e a apresentação mais esperada era a de Hillary Clinton com Chimamanda Ngozi Adichie, escritora do livro e do TedTalk “Nós deveríamos ser todos feministas”. Já estava esgotada, é claro.
Ainda tinham várias rodas de conversa disponíveis. Procurei pelas que mais me faziam sentido, mas acabei conseguindo apenas para uma chamada “Meditação no Exílio”. Fiz a reserva achando o título hippie demais, porém, quando cheguei já notei que seria algo que não poderia perder. Sala cheia, implorei um lugar e fiquei de pé, com um bloquinho em uma mão, celular na outra, mochilas no chão e olhos atentos.
Na primeira resposta ao intermediador, Dunya Mikhail chamou minha atenção não por se sair com algo pomposo, mas por um jeito simples, humilde, como se ela também estivesse se convencendo de que seria hábil a responder.
Dunya nasceu no Iraque e esteve na lista de inimigos de Saddam Hussein. Ela, agora residente dos Estados Unidos, contou sobre um país que nem eu e, creio, nem a maioria dos brasileiros conhece.
– Quando eu morava no Iraque eu queria ser exilada, eu queria sair do país, mas apesar disso eu sempre me senti em casa por causa da poesia. No Iraque, se você atirar uma pedra, provavelmente ela vai cair na cabeça de um poeta. Nós temos 199 nomes diferentes para Deus, por essas e outras, o meu país é um lar para os poetas – explica.
Dunya era jornalista e tradutora do jornal Baghdad Observer antes de ser perseguida e interrogada pelo governo. Então fugiu para Jordânia e depois veio morar nos Estados Unidos. Apesar de tudo, ela não se sente exilada.
– Eu sou como um pássaro. Se eu puder escrever poesia, eu me sinto em casa em um avião, em cidades que eu não conheço – afirma.
Mestre em metáforas, característica valorizada na poesia iraquiana, ela se compara a Orfeu.
– Ele trouxe sua mulher de volta com a condição de que ela não poderia olhar para trás ou seria morta. Eu pensei a mesma coisa quando deixei o meu país. Eu pensei: eu nunca vou voltar, eu estava brava e coloquei meu mundo dentro de uma mala. Eu não tive a chance de dizer tchau para os meus amigos. Mas eu fiz justamente igual a Orfeu, eu entendi que eu não podia olhar para trás. Eu não sei quem eu matei, mas eu não olhei – disse, brincando.
Sobre o jogo com a censura, Dunya admite que fazia, mas com certos limites.
– Eu queria ser entendida pelos líderes de verdade, mas não pelos censores. No Iraque, as palavras importam muito, você pode perder a sua vida por uma palavra. E eu não queria perder minha vida – explica.
Ao mesmo tempo em que relembra e lamenta tempos difíceis, Dunya ri das ironias da vida e da guerra.
– Eu fico aqui dizendo essas coisas, mas eu não consigo parar de pensar que Iraque e Irã ficaram em guerra por oito anos, matando uns aos outros. E eu, iraquiana, estou aqui sentada do lado do meu vizinho e nós estamos um ao lado do outro sem problema nenhum, bonito – comenta, indicando Hossein M. Abkenar, escritor iraniano (que será personagem do meu próximo texto aqui na 359 Online).
Escute abaixo Dunya Mikhail declamando Second Life, poema, segundo ela, inspirado na história do Iraque, que viu tantas guerras, mas que serve a todos que “talvez também precisem de uma segunda vida”. Logo após, uma tradução do texto:
Uma segunda vida
Depois dessa vida
precisamos de outra vida
para aplicarmos o que aprendemos na primeira
Cometemos um erro depois do outro
Nós precisamos de uma segunda vida para esquecer
Nós cantarolamos sem parar
Enquanto esperamos pela partida:
Nós precisamos de uma segunda vida para a música inteira
Nós vamos para a guerra
E fazermos tudo que Saimon diz:
Nós precisamos de uma segunda vida para amar sozinhos
Nós precisamos de tempo para cumprir os termos da prisão
Então podemos viver livres na nossa segunda vida
Nós aprendemos uma língua nova
Mas precisamos de uma segunda vida para praticar
Nós escrevemos poesia e morremos
Nós precisamos de uma segunda vida para saber da opinião dos críticos
Nós estamos sempre correndo em todos os lugares
Nós precisamos de uma segunda vida para parar e tirar fotos
O sofrimento nos toma tempo:
Nós precisamos de uma segunda vida para aprender a viver sem dor.
sobre o autor
- Atriz e jornalista. Morou em Porto Alegre, Brasília, San Francisco e agora Nova York. Foi repórter do Aqui DF, do Diários Associados. É idealizadora da série #ouviemny no Instagram @brunalauermann
Me emocionei ! Parabéns
Ótimo texto. Ótima história de vida. Parabéns!